Krishnamurti – Sobre a Verdade – Bombaim – 12 de março de 1950
Questionador: A questão quanto ao que é verdade é bem antiga, e não existe uma resposta definitiva. Você fala sobre a verdade, mas não o vemos atingi-la em seus experimentos ou tentativas, como vimos na vida de pessoas como Mahatma Gandhi e a dra.Besant. Tudo o que vemos é a sua agradável personalidade. O senhor pode explicar-nos por que há essa diferença entre a sua vida e a de outros que buscaram a verdade? Haverá duas verdades?
Krishnamurti: Você quer uma prova? E por qual padrão a verdade será julgada? Há aqueles que afirmam que para alcançar a verdade são necessários esforços e experimentos; mas será possível atingir a verdade dessa forma, por tentativa e erro? Há aqueles que lutam e fazem esforços enormes, em batalhas espetaculares, seja em público ou em silêncio; eles encontrarão a verdade? Será a verdade algo que se pode descobrir por meio de tentativas? Haverá um caminho para a verdade, o seu caminho e o meu caminho, o caminho daquele que faz uma tentativa, e o caminho daquele que não faz? Haverá duas verdades, ou terá a verdade diversos aspectos?
Bem, este é o problema colocado. Você diz: “Certas pessoas – duas , algumas ou milhares – fizeram tentativas, lutaram, buscaram a verdade, ao passo que você não faz tentativas, você leva uma vida agradável, despretensiosa.” Então, você quer comparar, ou seja, você tem um padrão, tem uma imagem dos líderes que lutaram para alcançar a verdade, e quando aparece outra pessoa que não se encaixa nesse modelo você fica contrariado e pergunta: “Qual é a verdade?” Você está contrariado – o importante é isso, e não se eu tenho a verdade ou se outra pessoa a tem. O importante é descobrir se você pode encontrar a realidade por meio de esforços, vontade, luta, brigas. Será que isso traz compreensão? Por certo a verdade não é algo distante, mas está presente nos detalhes da vida diária, em cada palavra, em cada sorriso, em cada relacionamento; acontece que nós não sabemos vê-la; e o homem que tenta, que luta com bravura, que se disciplina e controla – será que este enxergará a verdade? Amente que é disciplinada, controlada, comprimida pelo empenho – será que essa mente verá a verdade? É o óbvio que não.
Apenas a mente silenciosa enxergará a verdade, e não a mente que faz esforços para vê-la. se você estiver empenhando-se para ouvir o que eu estou dizendo, você vai ouvir? Você compreenderá apenas quando estiver quieto, quando estiver mesmo em silêncio. Se observar com cuidado, se ouvir com calma, então você escutará; mas se você se esforça e luta para captar tudo o que é dito, sua energia se dissipará nesse esforço. Então você não encontrará a verdade por meio de um empenho, não importa quem afirme isso, sejam os livros antigos, os santos antigos ou os modernos. O empenho é a própria negação da compreensão; apenas a mente silenciosa, simples, a mente que está imóvel, não sobrecarregada pelo próprio esforço – apenas uma mente como essa compreenderá, enxergará a verdade. A verdade não é algo que está a distância, não existe um caminho para chegar a ela, não existe o seu caminho ou o meu caminho; não existe o caminho da devoção, o caminho do conhecimento ou o da ação, porque não há caminhos que levem à verdade.
A partir do momento em que você tem o caminho que leva à verdade, você a divide, porque o caminho é exclusivo; e tudo que no início é exclusivo terminará em exclusividade. O homem que segue um caminho não conhecerá jamais a verdade porque está vivendo em exclusividade; seus meios são exclusivos, e os meios são o fim, não são separados do fim. Se os meios forem exclusivos, o fim também será exclusivo.
Assim, não existe caminho para a verdade, e não há duas verdades. A verdade não é do passado ou do presente, ela é intemporal; o homem que cita a verdade de Buda, de Shankara, de Cristo, ou o que se limita a repetir o que eu estou dizendo, não encontrará a verdade, pois repetição não é verdade. Repetição é mentira. A verdade é um estado da mente que brota quando não existe mais a mente que divide, que procura ser exclusiva, que só pensa em termos de resultados e conquistas. Só então existirá a verdade. A mente que vive fazendo esforços, disciplinando-se de modo a atingir determinado fim não pode conhecer a verdade, pois o fim é a sua própria projeção, e a busca dessa projeção, por mais nobre que seja, não passa de uma forma de auto-adoração. Um ser assim está adorando a si mesmo, e portanto não pode conhecer a verdade.
A verdade só é conhecida quando compreendermos todo o processo da mente, ou seja, quando não há luta. A verdade é um fato, e um fato só pode ser compreendido quando tiver sido removido tudo aquilo que foi colocado entre a mente e o fato. O fato é o seu relacionamento coma propriedade, com a sua mulher, com os seres humanos, com a natureza, com as idéias; e enquanto você não compreender o fato do relacionamento, sua busca de Deus só fará aumentar a confusão, pois é uma substituição, uma fuga, e portanto não tem significado. Enquanto você dominar sua mulher ou ela o dominar, enquanto você possuir ou for possuído, você não pode conhecer o amor; enquanto você suprimir, substituir, enquanto você for ambicioso, você não poderá conhecer a verdade. Não é a negação da ambição que torna a mente calma, e a virtude não é a negação do mal. A virtude é um estado de liberdade, de ordem, que o mal não pode fornecer; e compreender o mal é estabelecer a virtude.
O homem que constrói igrejas ou templos em nome de Deus, com dinheiro acumulado por meio de exploração, por meio de logro, esperteza ou jogo sujo, não conhecerá a verdade; ele pode ter a língua suave, mas sua língua é amarga pelo sabor da exploração, pelo sabor da dor. Só conhecerá a verdade aquele que não estiver buscando, lutando ou tentando atingir um resultado. A própria mente é um resultado, e o que quer que ela produza será também um resultado. Mas o homem que se satisfaz com “o que é” conhecerá a verdade. Contentamento não significa satisfazer-se com o status quo, mantendo tudo como está – isso não é contentamento. É na possibilidade de enxergar verdadeiramente um fato e permanecer livre dele que existe contentamento, que é virtude. A verdade não é contínua, não tem residência fixa; ela só pode ser vista a cada momento. A verdade é sempre nova e, portanto, intemporal. O que era verdade ontem não é verdade hoje; o que é verdade hoje não o será amanhã. A verdade não tem continuidade. A mente, entretanto, quer realizar a experiência que ela chama de verdade contínua, e uma mente assim não conhecerá a verdade. A verdade é sempre nova; é enxergar o mesmo sorriso e ver o sorriso como novo, ver a mesma pessoa e vê-la de forma nova, ver as árvores balançando como se fosse a primeira vez, ver a vida como nova.
A verdade não será encontrada nos livros nem por meio de devoção ou auto-imolação; ela será conhecida quando a mente estiver livre e quieta. E a liberdade, a quietude da mente, só acontece quando os fatos dos relacionamentos são compreendidos. Sem compreender os relacionamentos, o que quer que a mente faça servirá apenas para criar novos problemas. Mas, para a mente livre de todas as suas projeções, há um estado de quietude no qual cessam os problemas e surge apenas o intemporal e eterno. A verdade não é pois questão de conhecimento; não é algo a ser lembrado, nem algo a ser repetido, impresso e espalhado por aí. A verdade é o que é. Ela é inominável e, sendo assim, a mente não consegue abordá-la.