Não me mande flores e nem beterrabas por Moah Sousa
Moah Sousa – jornalista / produtor cultural
Madrugada avançada. Rotatória do Papa, em Porto Alegre. Pista da direita. Acesso à Avenida da churrascaria Chuletão na Brasa.
– Cuidado! Olha o sinal vermelho!
– Cala a boca, Maciel. Piloto automóveis exatamente como faço sexo. Selvagemente.
Minutos depois, o casal dá entrada na emergência do Hospital de Pronto Socorro Municipal. Imobilizados em equipadas macas, são conduzidos apressadamente por um corredor que parecia não ter fim.
A mulher, com o rosto envolto em gases empapadas de sangue. O homem, aparentando melhor quadro, não sangrava e nem gemia.
No caminho do atendimento, feridos de morte, esgremiram em busca de um culpado.
– Viu no que deu teus instintos animais?
– Cala a boca, Maciel. Você já nasceu morto.
– Foi você quem jogou o Ford no poste!
– E daí? Estou bêbada e estava bêbada quando casei contigo.
“Ela é uma tarada. Quase me matou de tanto sexo na lua de mel”, ecoou o marido nos corredores do hospital.
– Cala a boca, Maciel. Vou procurar outro alguém. Você não serve mais pra mim.
– Calma, esquece o Roberto Carlos. Você não vai ficar com efeitos colaterais estéticos.
– Ah, que patético! Quem é você para falar mal do Rei? Seus segundos de fama se resumem na ejaculação precoce.
– Isso tudo é calúnia. Pura calúnia!
No setor de traumatologia, a motorista gemia, enquanto o marido carona delirava. Do ré mi fá, agulhas, bisturis aliviavam suas dores e projetavam lembranças.
Ele, filho único, formado em artes plásticas na França e casado com uma veterinária especializada
em gado Zebu, nascida em Caxias do Sul. Deu no que deu.
Mesmo sentindo agulhadas nas costelas, um franco sorriso alegretense abriu-se em seu rosto ao lembrar de Nico Fagundes, um folclorista gaúcho e sobrevivente de UTIs, que definiu o médico como um sacerdote das nuvens, um exorcizador de fantasmas.
Sedado revelou as prantos que sua mulher era maldita. “Me maltrata, humilha, pisa e esmaga, mas não quero que morra. Ela é meu Modigliane com legendas do Dalton Trevisan”.
“Senhor. Calma, calma que tudo vai dar certo”, acariciou a jovem residente com manchas de sangue no jaleco branco.
“Não posso viver sem aqueles lábios desenhados para o perdão”, despejou o artista entre lágrimas febris.
Como se escutasse o palavriado do angustiado marido, a veterinária arrebanhou forças e rugiu:
– Cala a boca, Maciel. Não me mande flores. E nem beterrabas. Só quero um ramo de alecrim.
– Senhora. Senhora. Senhora…
O aparelho hospitalar bipa, bipa, alonga um biiiiiiiiiiiiipe e estende o manto do silêncio da morte.
O fato se deu num Domingo de Ramos. Uma data católica e móvel.
Divulgação Sabe Caxias: