PORÕES DA PANDEMIA – 01 – ESCORBUTO por Miguel Brambilla
PORÕES DA PANDEMIA – 01 – ESCORBUTO
Da hora do nascimento até a hora da morte, tinha um roteiro para ser seguido. O problema é que eu não lembrava mais as minhas próprias falas. Estava me vendo fora do corpo, tinha a consciência de um homem velho, mas um corpo de menino. Ia ficando pequenino. Num instante me senti apenas um girininho, rebolando como louco, tentando sobreviver, atingir o objetivo e precisava ser no centro. Tenho a impressão que usei todas as minhas estratégias de sobrevivência para aqui estar. Hora bolas, devia ter algum “coaching” nesta hora, para que a disputa não fosse desleal. Afinal, venci milhares de cadeias genéticas, possibilidades mutantes que tentavam chegar na frente. Talvez eu fosse uma mulher, talvez mais baixo, talvez tivesse olhos azuis, cabelos pretos, talvez pensasse em ser advogado. Alguma influência é justo que a genética tenha, por tanto esforço para vencer a “batalha de São Silvestre”, após a explosão do orgasmo paterno.
Nunca parei para pensar desta forma, enfim. Apenas um segundo de fecundação me traz memórias que invento eu acho, por que não devo tê-las. Imagino como deveria ter sido. Eram apenas 50% de mim, ainda faltava a outra metade. Então descubro agora, somos um quebra cabeças de partes que se completam ao longo da existência. Quanto é metade, quanto é a outra parte? Somos como empresas de capital aberto. Ao longo da vida, as emoções vão comprando em nosso banco de ações, participações societárias em nossos destinos e vamos nos expandindo e vamos tomando conta dos mercados da sensação de ser.
Tinha bastante tempo para pensar e refletir sobre meu destino após a fecundação. Sentado ao lado do corpo da minha mãe, sempre perto do útero, por que como dizem: “É o olho do dono que engorda o boi”. Estava ansioso para ver a diferenciação celular. Considerando-se a pequena diferença genética que temos do DNA dos ratos e uma possível margem de erro, tive sorte de ser quem eu sou. Podia ter dado errado. Mas para todos os efeitos, até hoje gosto muito de queijo.
A pandemia está nos deixando loucos. Mas a relação entre a loucura e a criatividade é muito próxima. Descobrimos novas relações com o tempo interior. Somos obrigados a conviver conosco mesmos depois de nem saber que existíamos. Estou sofrendo uma espécie de “Síndrome de Estocolmo” por mim mesmo, como se tivesse me auto-sequestrado no “home office”, esperando o “corona voucher” da vida, como uma espécie de “habeas corpus” social. Hora, com seiscentos mangos na carteira todo mês, como diriam meus antepassados claro, “hoje não tem puta pobre”.
Brasileiro é engraçado ao extremo. Aplauso para a gambiarra do dia a dia que vê na fumaça da floresta a culpa do caboclo e não do pecuarista. Que vê na seriedade algo profundamente tediosos e prefere atirar-se no grande “meme” do dia a dia. É muito mais divertido mudar a sociedade pela caricatura e pela fuga do que pela letra que combata esta sinecura.
Nem sei de onde tiro o significado das palavras. Ao meu lado talvez, o totem da inspiração. Mas só tomo café faz muito tempo. Tá bem, chá e chimarrão como estimulantes que terminam com “ina”. Podia ser vagina. Tirem as crianças da sala, por que o sexo libera adrenalina.
O parto parece ter sido fácil para mim. Para minha mãe tenho certeza que não. Dizem que eu, cabeção, não nascia. Mas eu estava ali. Querendo me obscurecer na inocência da criança, por que nada melhor que ser um bebezão, gordo, branco e leiteiro, fazendo gracinhas para ganhar tudo de mãos beijadas.
A vida vai nos endurecendo. O tal do Kisuco, cachorro pequenez, filho da puta, mordia meus calcanhares ou ameaçava me morder toda vez que passava por ele. Mas como não sabia me expressar em palavras, chorava. Meu pai, que me salvou da bocabertice ou sei lá, algo que todo pai dos anos sessenta deve ter se preocupado, ainda mais quando descobriu que eu seria cantor e não médico, também me salvou da viadagem, sem preconceito claro, achava que era pura manhã do “boby da mamãe”.
Acho que o bom da pandemia, seria nunca mais precisar dormir. Meu corpo não pede sono, pede vida. Preciso estar acordado para riscar as paredes desta hora, já que como disse a Dilma, sim ela, nossa rebuscada “presidenta”, que repito com orgulho estúpido da conta de brasileiros malucos que temos na presidência do pais das bananas que frita jacarés no pantanal. Não tenho muito objetivo, mas mesmo assim vou dobrá-los. Vai um “lkkk” de rede social.
Não era difícil compreender que afundaríamos mais cedo ou mais tarde. Eu já devia saber disso quando me emburrava e sentava no meu trono de meditação, uma forquilha perfeita para a meditação num pessegueiro do quintal da casa da Rua Afonso Arinos, 138. Eu acho que eu lembro até o numero do telefone, com um pouco de esforço. Meu pai tinha orgulho de decorar números. Seu Corcel II, que aliás muito me serviu, era o IW-9520. Hoje esse número está no sótão da minha mente e me faz lembrar Oscar Wilde e sua reflexão sobre a bagunça de nossas memórias. Se jogamos tudo na mente como num sótão, para que servem? Bem, estou no porão da pandemia e também não descobri. Para que serve a nostalgia? Para que serve a saudade? Para lembrar que estávamos alí? Que temos histórias e referências importantes em nossas vidas e que depois de adultos, teremos que transformar isso em seriedade e cidadania, para tentar evitar de sermos rapinados pelo bando de abutres que cercam nossos cofres públicos? Talvez…quem sabe.
Bom mesmo era tentar invadir o teatro montado pela minha irmã mais velha…longos dois anos e meio eu acho…não pretendo calcular matematicamente agora, e suas danças com as amigas. Eu não era convidado, mas entrava de furão. Era ali no porão, onde as tampinhas de pingola com os Disneys rolavam e colecionamos o tema do aniversário da outra irmã, mais nova. Mas como tenho cabelos brancos e barba branca hoje, elas dizem que o mais velho sou eu. Naquele porão vivemos também comunhão, outros bons churrascos, meu pai guardava lá tudo que comprava, barco, reboque, dois carros, e claro, também tivemos lá uma infestação de pulgas. Trate com Neocid. Aquele da latinha amarela. Naquele dia, pensei estar no Egito.
Não vou dar as mesmas memórias para os meus filhos. Ninguém consegue fazer isso. Acho que nem devemos. Eles são diferentes. Nem pensava nessa porra dessa pandemia, quando brincava com meus Falcons no tanque. O “olhos de águia” era topo de linha. Mas como bom brasileiro, com uma bola de ping pong, inventei um futebol de bonecos e fazia do suporte da velha vitrola Philipis, ao lado dos discos do Pepino de Capri e do Globo de Ouro, dos Originais do Samba e do Luiz Airão que ali estavam em abundância, absorvia por psicometria a melodia de músicas que sei cantar até hoje com facilidade.
Era bom deitar no carpete novinho da sala e cantar o Mexe Coração. Gravei a voz da minha mãe que se perdeu nas milhares de regravações de fita cassete. Eu era chato pra dedéu. Resolvi atormentar a todos, ensaiando na sala, cantando como gazela desafinada o velho Raul, incomodando todos, guerreando com o silêncio, até que meu pai, sem falar absolutamente nada, me deu um fone de ouvidos. Ajudou bastante. Agora as pessoas não ouviam mais a banda nas caixas do CCE que ainda está lá no porãozinho, mas só minha voz. As mães são santas. A minha deveria ser canonizada. Eu era chato pra dedéu. Imaginei agora minha esposa e meus filhos olhando para mim com cara de riso dizendo: “Era?”
Escorbuto. Joguem os corpos no mar. É só uma gripezinha. E daí? Não sou coveiro. Verdade, por que precisa ter dignidade para ser coveiro. Estar ali, sensibilizado com a dor dos que se despedem, mesmo que temporariamente de quem parte, ao mesmo tempo que rotinizados pelo trabalho cotidiano, imaginam o bar depois de selar o túmulo do rico ou do pobre, do jovem ou do velho, da mulher ou da criança. Aquela dor não é dele. Ele até sente, mas afinal, é o seu trabalho. Diria ele a mesma coisa quando fosse perguntado sobre os incêndios na Amazônia, o fogo no Pantanal, a bancarrota econômica, os mais de 150 mil mortos da pandemia em menos de um ano no Brasil: E DAÍ? NÃO SOU PRESIDENTE DA REPÚBLICA.
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