“Faz de conta que ainda é cedo” // MINHA MENININHA VIRANDO MOÇA
por MIGUEL BRAMBILLA
A vida do escritor é feita de resenhas. Nem sempre boas, mas quase todas nostálgicas. Por necessidade precisamos escrever a crônica da vida que transborda de nossos corações, sem pensar de forma muito racionalizada os acontecimentos que como tsunami do tempo, nos atropelam pela vida e vão se acumulando nas prateleiras da memória. As vezes, da esculhambação de palavras que por todo tempo ficam repicando nas paredes da mente, o tempo inteiro, tentando se organizar, igual aquele globo de bolinhas da loteria, por onde saem números, a emoção supera a tortura do vazio e o branco se deleita com as manchas físicas e digitais das letras e suas simbologias, suas histórias pictográficas na evolução da linguagem humana.
Não chorei na festa de aniversário de 15 anos da Júlia. Falei pouco para conter as lágrimas. Escolhi a emoção da alegria. Não que eu não seja um chorão de comédia romântica. Sempre fui. Chorei na primeira comunhão de forma impulsiva, na frente de todos, após ler um trecho do Evangelho. Foi o milagre da vida que me trouxe a Júlia. Assim como os outros amores. Agora aqui ela é a protagonista destes 15 anos que mudaram a história da minha vida mais um pouco.
No primeiro dia em que tive que cuidar da minha bebê, depois de ter dormido um bom sono no hospital quando ela nasceu, de lembrar que ela parou de chorar no meu colo, quando aproximei ela da música de natal na TV e o violino tocava lindamente, já que o dia real da moça é 23 de dezembro. Também lembro que fui convidado a me retirar do meu quarto, por que o meu ronco de fera adormecida, não permitia que ela dormisse e as mil voltas que dava na mesa com ela bebê de deitada no meu braço, cantando Tim Maia, para tentar acalmá-la. “Dia de domingo” – “Faz de conta que ainda é cedo. Tudo vai ficar por conta da emoção…”
Júlia Elisa sempre foi a Júlia Elisa. Bebê, na cadeirinha da mesa, chamada cadeirote, quando não queria comer o ovo cozido, discretamente dispensava para Dama, a cachorrinha pinscher que se fartava com a generosidade. Júlia Elisa matou o aspirador de pó com cera líquida, tentou colar o olho com superbonder, e por ai.
No primeiro dia que ficou sob minha jurisdição de pai, foi dureza. Por que ela dormia quando a mamãe estava. Mas a vida sempre exige a volta ao trabalho. Cantei com a Exilados até as três da manhã, cheguei as quatro em casa exausto, as seis acordei para levar a Adriana para o trabalho e volto na esperança de dormir. Porém, a bela Júlia Elisa me premiou com todo o fruto do seu saudável intestino de baby. Minha primeira e única troca de fraldas foi um desastre completo, salva pela vó Marisa felizmente.
Júlia Elisa tinha já personalidade. Se emburrou pequeninha, três anos eu acho. Foi para o quarto. Eu disse para a mãe dela que era normal ou a mãe disse. De repente, salta a tampinha na porta do quarto, mãos na cintura, cara de injuriada. “Tua pópia filha é do mal? Tua pópia filha?” Lá vinha a sementinha de Júlia pela frente.
Tenho filmado. Ela era capaz de falar no seu mundo infantil por hora inteira. Gravei vinte e cinco minutos de uma narração dela com seu mundo infantil e veio mais. A escola. Nove anos, do primário ao ensino médio, passaram como um rio tempestuoso e lindo. Entre idas e vindas, esperas no carro, nas arquibancadas da escola, na chuva, na indignação com os pais e mães egoístas que param na faixa de segurança como se só os filhos precisassem descer, passou o tempo. No primeiro dia, brinquei com a Júlia Elisa algo que não lembro sobre os papos dos amigos que já rolavam cedo, como até hoje com as turminhas do RPG. Aos seis anos, lembro exatamente o momento da avenida que muitas vezes passamos na volta da escola, o sábio conselho da menininha agora na primeira série. Primeiro dia. “Pai, teu dever é me dar conselhos, não ficar me zoando”. Vinha mais Júlia Elisa por ai.
Fazia versinho na escola quando tinha que assoprar o joelho ralado. “Você é meu queijinho, todo raladinho…” Somos amigos. Júlia Elisa se acostumou com as brincadeiras. Virei o “pavesão”. Em conchavo, ela e o Leonardo, irmão mais velho, combinaram de me deixar no banheiro na velhice de castigo, com um livro sem a última página. Virei alvo de bullyng. Ainda bem que o Estatuto do Idoso está aí para me salvar destes adoráveis monstrinhos que culpam aliás o meu DNA por eles serem assim. “Filhos não é?”
Passou Júlia Elisa o tempo. Já se foram 15 anos. No dia 20 de dezembro te pego pela última vez oficialmente na escola Clemente Pinto. Depois mudamos o destino juntos. Que bom. Viraste uma menina linda, inteligente, querida. Desenhista, escritora já em estreia criativa: “Histórias Mal Assombradas Para pessoas Entedeadas” assinado por Elisa Barcellos. Adora me desafiar. Tirou o Brambilla do nome artístico. Tudo bem filha. Só quero que sejas feliz.
Linda como és, só posso considerar-te um presente da vida, de Deus, do amor. Que teus sonhos te realizem. Que eu possa estar presente o máximo de tempo que a vida me permitir. Que tudo o que fizermos juntos tenha a graça, a alegria e a seriedade de quem ama para sempre. Por que o tempo passa rápido filha querida e meu coração estará sempre em algum lugar para te dizer.
“FAZ DE CONTA QUE AINDA É CEDO”
Te amo! Pai.
18/12/2023