Artigo: A problemática da locação de imóveis em tempos de calamidade pública

Foto Diana Staudt

As águas transbordantes não apenas inundaram o Estado do Rio Grande do Sul, mas também transpuseram os limites das relações locatícias há muito estabelecidas.
Observamos, assim, uma possível reconfiguração forçada dessas dinâmicas, pondo em xeque os fundamentos solidificados pela Lei do Inquilinato (Lei nº 8.245 de 1991).
Nesse panorama, enquanto enfrentávamos a pandemia do Covid-19, debatíamos extensivamente a necessidade de (re)negociar, revisar e estabelecer limites e mecanismos contratuais adequados às exigências de um estado de calamidade pública.
Essas discussões nos legaram lições inestimáveis; contudo, revelaram-se insuficientes para nos preparar para as ramificações dos desastres climáticos nos contratos de
locação.
Recentemente, o Rio Grande do Sul declarou estado de calamidade pública por meio do Decreto Estadual nº 57.596, de 1º de maio de 2024, marcando como período inicial dos eventos climáticos de chuvas intensas, o dia 24 de abril de 2024 e término em 1º de maio de 2024. A motivação desse decreto residiu na ocorrência de eventos de “grande intensidade, classificados como desastres de Nível III”. Em face da
continuidade, foi necessário a publicação de um novo Decreto Estadual, o de número 57.600, datado de 4 de maio de 2024, que estendeu o período para todo o mês de maio de 2024.
O Decreto Legislativo nº 36 de 2024 reconheceu o estado de calamidade pública para efeitos do disposto no artigo 65, da Lei Complementar nº 101, de 2004, estendendo sua vigência até o dia 31 de dezembro de 2024. Diante desse cenário catastrófico e
imprevisto, que tem sido palco de perdas humanas, surge a necessidade de discutir os danos materiais aos imóveis e as implicações nos negócios jurídicos locatícios, bem
como a responsabilidade pela reparação e a busca por um (re)equilíbrio contratual.
Para os contratos que contemplam seguros com cobertura para danos por inundações, a solução se apresenta mais acessível. Entretanto, diante da omissão nos contratos de locação sobre a responsabilidade por danos decorrentes de alagamentos,
torna-se imperativo construir soluções jurídicas. Encontramo-nos diante da lacuna de uma normativa específica que aborde as inundações no contexto das locações imobiliárias.
O espírito da Lei do Inquilinato, inicialmente voltado à proteção do locatário e à solução do déficit habitacional, assim como ao incentivo ao investimento imobiliário (1), encontra-se desamparado diante da realidade gaúcha. Imputar a responsabilidade exclusiva ao locador poderia resultar na ruína financeira de muitos que dependem exclusivamente de rendas locatícias, além de desestimular novos investimentos no setor.
A proposta de uma fórmula para a resolução de conflitos deverá considerar seu impacto potencial sobre o mercado imobiliário do estado, possivelmente afetando sua competitividade. A análise deve ser casuística, focando na situação específica de cada imóvel e sua condição de habitabilidade.
Estamos diante de um desafio proporcional ao dano sofrido pelo imóvel, que impacta diretamente a expectativa de receita contínua por meio de aluguéis.
Paralelamente, o locatário enfrenta a perda de seus bens, o que justifica uma reavaliação do equilíbrio contratual através de descontos, bonificações e possíveis flexibilizações
que estejam alinhadas ao permitido pela Lei do Inquilinato.
As relações locatícias, portanto, poderiam ser reinterpretadas, flexibilizando excepcionalmente conceitos estabelecidos nos contratos, através de novos ajustes. A necessidade de (re)negociar emerge como um pilar de sustentação para um mercado imobiliário que, conforme demonstrado durante a crise sanitária global, é capaz de conceber soluções extrajudiciais para os conflitos surgidos.
Neste processo de reinvenção, onde não há vencedores, ecoa o provérbio que “não está morto quem peleia”, refletindo a resiliência de um povo em busca de soluções e adaptações.
Nesse contexto, a Lei do Inquilinato demanda um novo olhar, inclusive para que se atinja o objetivo primordial da lei: incentivar o mercado para fins de investimento. O
locador, antes visto como parte mais forte da relação, poderia agora encontrar-se vulnerável, este novo cenário sugere como uma oportunidade para reavaliar e reequilibrar as relações de poder entre locador e locatário, permitindo, assim, a
construção de soluções que possam atender as necessidades atuais.
SOUZA, Sylvio Capanema de. A Lei do Inquilinato Comentada Artigo por Artigo. 14
ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023.
Drª Daiana Staudt, advogada, associada do IARGS, vice-presidente da Comissão
Nacional de Direito Imobiliário da ABA

Divulgação Sabe Caxias:

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